O homem é um animal político. Evidências arqueológicas e
históricas apontam nesta direção. Desde os tempos mais remotos, os seres
humanos organizaram-se e estabeleceram alguma espécie de hierarquia. Ao
mesmo tempo em que constataram ser mais vantajoso viver em comunidade,
fizeram desenvolverem-se regras de convivência que, a princípio, não eram
escritas, visto que nem escrita existia. Eram simplesmente transmitidas de
uma geração a outra, criando aquilo que se denomina tradição (imitação dos
antepassados). À medida em que famílias reunidas constituíam um clã, daí
vilas e tribos e assim por diante, o contingente cada vez maior de
indivíduos em convivência próxima demandou não só o estabelecimento de
leis,
como também, por consequência, a criação de uma autoridade capaz de
aplicá-las. Vê-se, pois, que a existência de autoridades e da administração
pública nada mais são do que uma mera decorrência do caráter social dos
seres humanos, nada havendo de inerentemente mau nisto.
A palavra “política” ou “político” originam-se do radical
grego polis, que significa simplesmente “cidade”. De fato, em grego, o termo
polités, derivado de polis, significava apenas “cidadão”. O Novo dicionário
Aurélio define “política” como “sistema de regras respeitantes à direção
dos
negócios públicos” ou “arte de bem governar os povos” e assim por
diante.
Visto por este ângulo, qualquer um de nós é um político, no sentido de
sermos cidadãos, de fazermos parte do estado e estarmos sujeitos a suas
leis. O grau de envolvimento pode variar, mas todos – integrantes do poder
público e civis - mantém a condição de membros do estado, a menos que sejam
cassados politicamente e percam sua nacionalidade. A simples posse do
documento de identidade atesta o fato de o indivíduo ser parte reconhecida
do estado.
Todavia, para milhões de Testemunhas de Jeová, a palavra
“política” é vista como descrevendo algo inerentemente mau em si mesmo. As
declarações de Jesus Cristo em João 15:19 e 17: 16, onde ele fala que seus
seguidores “não fazem parte do mundo”, bem como sua declaração de “meu
reino
não faz parte deste mundo “ (João 18:36) têm sido entendidos pelo corpo
governante como a base doutrinal para a recusa de seus adeptos em
participar da administração pública, quer por votar quer por se candidatar
a cargo eletivo. Apesar de o assunto abordado por Cristo nesta ocasião NÃO
fazer referência à política, mas meramente ao “mundo”, no sentido
daqueles
que se encontram apartados do cristianismo e opondo-se a ele -
independentemente se assim procedem como povo ou na condição de governantes
- este tem sido o alicerce da doutrina que tem levado centenas de milhares
de Testemunhas de Jeová em todo o mundo às barras dos tribunais, ao
encarceramento ou até, como no caso do país africano Malauí, à perseguição,
tortura e morte (Anuário de 1965, em inglês, pg. 171).
A Torre de vigia tem fundamentado seu ensinamento tomando como
base:
a) As declarações de Cristo acima mencionadas, bem como as declarações do
discípulo João e do apóstolo Paulo sobre não ser parte do “mundo” (Tiago
4:4
e 1João 2:15).
b) O episódio no qual Cristo, ao tomar conhecimento de que uma multidão
estava à sua procura para fazê-lo rei, simplesmente retirou-se para o monte,
sozinho (João 6:15).
c) O episódio dos 3 hebreus que se recusaram a adorar uma imagem de ouro
erigida pelo rei da Babilônia, Nabucodonosor (Daniel, cap. 3).
d) A simbologia apocalíptica, representativa do poder político do mundo, na
forma de uma fera que ascende do mar, tendo 7 cabeças e 10 chifres
(Apocalipse cap. 13).
Quanto ao primeiro ítem, conforme já fora dito, o termo “mundo”
tem sentido genérico e pejorativo, referindo-se ao conjunto de pessoas e
instituições contrários à doutrina cristã, não havendo qualquer indício
de
que se possa restringir o termo à instituição política, até porque foi o
sistema religioso, não o político, o que mais perseguiu a Cristo, tendo sido
os líderes religiosos de seu tempo que o levaram a Pôncio Pilatos. O fato é
que ninguém pode, com certeza, definir o que poderia ser enquadrado, por
sua essência, no termo “mundo” a que a Bíblia se refere. Certamente um
sistema político ou religioso corruptos bem que se enquadrariam nesta
definição. Contudo, isto não acontece pelo que estas coisas são em si, mas,
sobretudo, pela forma com que são exercidas. Se condenarmos a religião pela
forma corrupta com que alguns a praticam, estaremos inviabilizando a prática
do cristianismo, a qual, em última análise é um religião. Por exemplo, a
Torre de Vigia tem destacado o sistema comercial ganancioso como parte do
“mundo” a que se referem as passagens anteriores. Ora, se, em virtude disto,
o comércio em si fosse visto como uma coisa essencialmente má, os cristãos
estariam privados de seu sustento material, pois de que outra forma
adquiririam os meios de subsistência, senão pela compra e venda? De modo
análogo, não é pela forma distorcida que muitos exercem a política que tal
desvirtuamento da mesma emprestará à política sua essência maléfica. Muitos
cristãos e a própria Sociedade Torre de Vigia têm negócios sem que suas
consciências objetem a isto. Por que não se deveria dar o mesmo em outros
campos da atividade humana?
Quanto ao segundo ponto, ou seja, a forma como Jesus
Cristo encarou certas instituições para o uso dele, é razoável concluir,
pelo fato de que Cristo não quis ser rei, que nenhum de seus seguidores
poderia jamais participar da administração pública? Se isto for encarado
assim, chegaremos a outras conclusões bastante estranhas. Por exemplo,
Cristo jamais se casou ou constituiu família. Significava isto que os seus
seguidores também tinham de fazer o mesmo? Ou significava apenas que , sendo
ele o Filho de Deus, certos empreendimentos próprios às pessoas comuns não
lhe eram aceitáveis, por sua condição especial e por sua missão? É bom
lembrarmos que, até completar 30 anos, ele exercia o ofício de carpinteiro,
como seu pai, José. Contudo, ao iniciar seu ministério, cessou também esta
atividade, sem que isto significasse que seus discípulos não poderiam
trabalhar neste ou em qualquer outro ofício. Generalizar o caso particular
neste assunto pode ser precipitado e, acima de tudo, perigoso, especialmente
se tomarmos em conta as consequências, em nossos dias, da imposição de uma
adesão estrita a uma regra não claramente ensinada por Cristo. Além disso, é
irônico que a fé mais elogiada por Jesus Cristo nos evangelhos tenha sido a
de um oficial romano - um centurião e, portanto, um agente do estado – sem
que nenhuma objeção fosse feita contra o cargo por ele exercido (Lucas 7:9).
Anos antes, João Batista, discursando diante de pessoas em serviço
militar, recomendou-lhes: “contentai-vos com vosso soldo”, sem qualquer
referência a uma objeção de consciência em relação a servir ao estado. De
fato, João Batista, o anunciador, jamais explicitou tal ensinamento.
Tampouco Jesus, o mestre, o fez. Deveria uma organização nos nossos dias
fazê-lo?
O terceiro ponto, o do incidente dos 3 hebreus em
Babilônia, é, talvez, o mais inconsistente, pois não é senão no próprio
livro de Daniel que encontramos a chave para o entendimento do assunto.
Vejamos: o relato mostra que os 3 Hebreus, Sadraque, Mesaque e Abednego,
recusaram, NÃO um cargo na corte do rei Nabucodonosor, mas um ato de
adoração a uma imagem de ouro. Antes que alguém pense que tais coisas são
equivalentes, faria bem em considerar antes o capítulo anterior do livro de
Daniel onde o profeta, após revelar o significado de um sonho profético do
rei, deixou-o extraordinariamente impressionado por sua sabedoria. O que o
rei fez – deixemos que o próprio Daniel o diga:
“Consequentemente, o rei fez de Daniel alguém grande e
deu-lhe muitas dádivas grandes, e o fez GOVERNANTE de todo o distrito
jurisdicional de Babilônia e PREFEITO supremo sobre todos os sábios de
Babilônia.... Daniel estava na corte do rei.” (Daniel 2:48,49) TNM
Este não é de modo algum um caso isolado. Houve um
precedente séculos antes: trata-se de José, um dos filhos de Jacó. Ele tinha
sonhos proféticos, nos quais seus irmãos o serviam. Isto, bem como o afeto
especial do pai por José, acabaram por despertar o ciúme de seus irmãos.
Planejando livrar-se dele, seus irmãos o venderam como escravo a beduínos,
os quais o levaram ao Egito. Foi lá que seus sonhos tiveram cumprimento.
Numa situação extremamente similar àquela em que o profeta Daniel se
encontraria no futuro, José acabou indo ter com o Faraó, a fim de
interpretar-lhe os sonhos revelados por Deus. O que fez o Faraó? O relato
diz:
“Com isso, Faraó tirou da sua própria mão seu anel de
sinete e o pôs na mão de José, e vestiu-o de roupas de linho fino e
colocou-lhe um colar de ouro em volta do pescoço. Além disso, fê-lo andar no
segundo carro de honra que tinha, para que clamassem diante dele:
‘Avreque!’, constituindo-o assim sobre toda a terra do Egito.” Gênesis
41:
42,43 TNM
Em ambos os casos, tanto de José quanto de Daniel, notamos
que:
1) Deus pavimentou-lhes o caminho até sua ascensão ao poder.
2) Nenhum dos dois rejeitou o cargo político, mas o exerceu de modo a louvar
a Deus.
Quanto ao quarto ponto, é o mais subjetivo de todos, pois
tenta traduzir, na prática do dia-a-dia cristão, os sinais do livro de
Apocalipse. No capítulo 13 vemos descrita uma fera de 7 cabeças e 10
chifres, a qual representa uma sequência de 7 potências, provavelmente
Egito, Assíria, Babilônia, Medo-Pérsia, Grécia, Roma e Estados Unidos. Tais
potências são expostas como recebendo seu poder diretamente de Satanás e
que, portanto, os cristãos não podem transigir por terem parte no sistema
político. Satanás é descrito em Apocalipse como tendo descido à terra e
como tendo estado a dirigir as nações desde então (Apocalipse 12:9). É tal
raciocínio razoável?
Em primeiro lugar, não foi apenas após o idoso apóstolo João
ter escrito o livro de apocalipse na ilha de Patmos que se introduziu a
noção de que o diabo tem controlado por milênios o rastro sangrento das
potências militares. A Bíblia revela que Satanás expôs todos os reinos do
mundo a Cristo, oferecendo-lhe estes em troca de um único ato de adoração
(Mateus 4:8,9) Ora, ele não os ofereceria se não lhe pertencessem. Todavia,
é preciso lembrar que a dois dos reinos prefigurados pela fera de Apocalipse
- Egito e Babilônia - serviram os servos de Deus, respectivamente, José e o
profeta Daniel. Pergunta-se: havia algo de menos objetável nestes reinos
pagãos da antiguidade do que o que há nas nações atuais (muitas delas
cristãs), de modo que a um servo de Deus seria permitido servir àquelas, mas
não a estas últimas??? Vale salientar que, só nas ruínas de Babilônia
(atual Iraque) foram desenterrados nada menos do que cerca de 53 templos,
cada um dedicado a uma infinidade de deidades. Seria a “cabeça” da estátua
do sonho de Nabucodonosor – a própria Babilônia - mais aceitável do que
seus
“pés”? Não teria sido mais objetável para o profeta Daniel ter servido
naquele reino do que seria para um cristão, nos dias de hoje, servir ao seu
país de forma digna e honrada? E quanto a José? Teria sido mais honroso
para ele servir na corte do Egito adorador de bezerros de ouro do que seria
para um cristão hodierno simplesmente cumprir com sua obrigação de eleger
pessoas para a administração pública, ainda mais sabendo-se que isto não tem
conotação religiosa, diferentemente do antigo Egito e de Babilônia???